por Carolina Nóbrega


projetos são ficções encabeçadas ao ponto de se tornarem verdade. mas a prática, a ação, nunca condiz inteiramente com o projeto, escapa dele, o desvia, o desrespeita, o transforma. ter certeza daquilo que se quer criar - amarrar tudo, garantir lógica, coerência e procedimento, lixar as arestas - é de fato o que é o processo artístico? isso é de fato mais potente do que o acaso? ao acaso, talvez não surgissem modos de ação e linguagem se não mais, tão interessantes quanto? o anseio pela conquista dessa bloco sólido ou poroso entre conceito e prática pode ser ainda mais desgastaste em trabalhos em coletivo, nos quais montantes gigantescos de energia se escoam na busca pelo consenso. porque não, então, deixar entrar o acaso como protagonista a nortear um pouco as escolhas, desconfiando um pouco de nossa hipercoerência artística? talvez dê errado. mas, mais uma vez, por que não? por que não ser ineficiente?

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Por causa de como o cérebro é feito, a natureza nunca parecerá disforme, então porque se preocupar? (Allan Kaprow - como fazer um acontecimento? - 1966)
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No fim do ano passado e início deste, fiz uma viagem para o Para, na qual acompanhei os dois últimos dias de uma festa tradicional de Carimbó. No último dia de festa, acontece o Pelouro, um sorteio dos festeiros do próximo ano. O festeiro é o responsável por preparar um dia inteiro da festa (que dura onze dias e onze noites), incluindo o café da manhã, o jantar, uma bebida de gengibre com cachaça e a decoração do barracão. Ele terá que preparar e bancar tudo com seu dinheiro. E tudo será distribuído a quem comparecer na festa gratuitamente.

No festejo de Carimbo de Santarém Novo, os festeiros não podem receber patrocínio – nem do governo, nem de políticos, nem de comércio, etc. A festa e tudo que é nela ofertado tem que ser uma doação material e energética.

O sorteio foi o sorteio mais ineficiente que já vi na minha vida. Em um pote haviam as datas da festa do ano seguinte mais um monte de papéis em branco e no outro pote os nomes de todas as pessoas da irmandade (que tem mais de duzentas famílias). Eles sorteavam um papel com o nome de uma pessoa num pote e no outro, sorteavam a data ou o papel em branco. Se era branco, a pessoa sorteada não seria festeira, se era com a data, eles viam se a pessoa estava presente, se ela não estivesse, a data voltava para o pote e tudo continuava; se ela estivesse, ela aceitava ou não ser festeira, se aceitasse, a data era fechada e se negasse, a data voltava para o pote e tudo, uma vez mais, continuava. 

Durou muito tempo, horas mesmo, até eles conseguirem fechar os onze dias de festa. No início eu e os outros "estrangeiros" que ali estavam, não entendiam porque o esquema era tão demorado e pensamos em mil outras possibilidades para a coisa se desenrolar mais rapidamente... depois entendemos que a questão não era ser eficiente.

Em primeiro lugar, desse jeito eles acabavam falando o nome de todos os envolvidos na festa, acabava sendo um crédito, um jeito de fazer todos estarem presentes e serem homenageados. Em segundo lugar, era tão improvável que você fosse sorteado, que ser escolhido se apresentava de fato como destino (ser escolhido era intensamente celebrado ao som de gritos e rufos de tambor).

Essa opção por ser ineficiente lembrou-nos (os estrangeiros) de Francis Alÿs, artista belga residente no México, por conta de um dos princípios que norteiam seu trabalho: máximo de esforço, mínimo de resultado. Princípio esse que é uma inversão proposital da lógica de mercado, que nos lembra que não se há de fato um lugar final ideal a ser alcançado (uma compensação) e que a práxis em si mesma é o que constrói a vida (o agora). Alÿs cria seus trabalhos como uma “resposta épica”, ao mesmo tempo fútil e heróica, absurda e urgente.



Em 2002, em “quando a fé move montanhas”, ele convenceu 500 estudantes peruanos a andar em uma linha empurrando com uma pá a areia de uma duna na zona periférica da cidade, para assim, mover a duna em alguns centímetros.



O movimento minúsculo e temporário da duna dramatizou esse princípio de “máximo esforço e mínimo resultado”, que, segundo Alÿs, tipifica muitos esquemas de modernização latino-americanos, assim como são também uma conquista monumental realizada através da co-operação. Para Alÿs, era essencial que os participantes doassem seu tempo e energia para que ação servisse como modelo de oposição a princípios econômicos conservadores de eficiência e produção.



Diante dessa montanha que se moveu e desse pelouro, dessa (des)ordem cultural tecida ao acaso, será talvez possível se vislumbrar outros modos de criação para as artes? 

Uma proposta qualquer a um coletivo qualquer. Um sorteio. Outro. 

Haverão 3 potes, pote A, pote B e pote C. No pote A estarão ao menos 103 pedaços de papel, nos quais em apenas 3 estarão escritos a palavra SIM e nos outros todos a palavra NÃO (esse número pode ser aumentado ou diminuído caso queiram-se sortear mais ou menos coisas). No pote B estarão os papéis nos quais estarão desejos de procedimentos de pesquisa descritos separadamente. Todos os participantes poderão escrever quantos papeis com desejos de pesquisa quiserem. E no pote C estarão os nomes de todas os participantes do coletivo.

Duas pessoas serão sorteadas no pote C. Primeiramente, o mestre de cerimônias, que irá ler todos os resultados do sorteio. Depois, um ajudante que irá sortear os papéis na ordem estabelecida e mostrar para o mestre de cerimônias para que ele leia.

O ajudante irá primeiro sortear uma procedimento no pote B, que o mestre de cerimônias lerá em voz alta; depois sortear um papel no pote A, para que o mestre de cerimônias diga se aquele procedimento não será desenvolvido (se sair NÃO) ou se será desenvolvido (se sair SIM). Se sair NÃO, o ajudante simplesmente enrola os dois papéis juntos, os deixa de fora dos potes e retoma o sorteio. Se sair SIM, o ajudante sorteia um nome no pote C, o mestre de cerimônias lê o nome que foi sorteado em voz alta, a pessoa sorteada então deve se levantar, ir a frente de todos e em 5m explicar (falar-fazendo) no que consiste o procedimento selecionado como se fosse um especialista (mesmo que não tenha idéia do que se trata, ele inventará, ele mentirá). Depois de passados dos 5m a pessoa volta a sentar e o sorteio é reiniciado.

Os procedimentos serão pesquisadas pelo coletivo na mesma ordem que saírem no sorteio.

Dessa maneira, ineficiente, o mestre de cerimônias lerá em voz alta boa parte dos procedimentos escritos pelos integrantes do coletivo. Dessa maneira, ineficiente, o coletivo verá passar todos os procedimentos possíveis virtuais sobre seus olhos e imaginários, como os créditos de uma experiência que nunca se deu. Dessa maneira, ineficiente, todos os participantes se sentirão a vontade para propor os procedimentos que desejarem, sem necessidade de justificar ou convencer ninguém, descobrindo, a partir das reações das pessoas ao ouvirem a descrição do procedimento, interesses ou desinteresses expontâneos do coletivo pela sua proposta anônima. 

Caso hajam mais "NÃOs" do que procedimentos e que termine uma rodada inteira sem ainda terem sido sorteado todos os "SIMs", os procedimentos com "NÃOs" serão colocadas de volta o pote B para uma nova rodada, mas os nãos sorteados não voltam, para acelerar a rodada seguinte.



10.4.13

momento para não fazer

Postado por 16 mulheres e 1/2 |


Hoje. Agora pela manhã. A partir das 8h, sem prazo de término exato. Iremos deitar no chão, sobre a sombra do Minhocão na altura da saída do Metro Marechal Deodoro, com uma pedra no peito.
O trabalho "um momento para não fazer", foi o primeiro "não fazer" realizado no 16 mulheres e 1/2, na primeira janela poética desenvolvida em 2012. Os "não fazeres" foram propostas em que o corpo "desistia de agir", deixando que algo "agisse sobre ele". A pedra no peito foi realizada na janela poética coordenada por Carolina Nóbrega a partir da concretude da relação corpo-objeto bruta do trabalho da artista plástica Ana Mendieta, sendo, mais especificamente, uma releitura de "Burial Pyramid", uma video-performance de 1972, realizada pela artista plástica Ana Mendieta. - http://16mulheresemeia.blogspot.com.br/2012/05/pedra-no-peito-peito-em-pedra.html
No seu trabalho, Ana Mendieta cobriu seu corpo de pedras em uma ruína zapoteca em Yagul, no México. Conforme a artista respirava, as pedras se moviam. Aos poucos, Mendieta amplia o movimento toraxico da respiração, até que as pedras caiam de cima dela, revelando o seu corpo.
A releitura "um momento para não fazer", desloca a ação de uma ruína pré-hispânica - contexto no qual a artista mexicana busca tornar vivo ou mostra o quanto ainda vive o passado que habitou àquelas ruínas -, para o centro de uma megalópole como São Paulo, transformando radicalmente os sentidos da obra original de Ana Mendieta, para que algo inteiramente distinto se desenhe.


Trata-se de uma ação de grupo, aproximadamente 15 pessoas. Cada performer se deitará no chão de um espaço movimentado da cidade, de olhos fechados, com apenas uma pedra no peito. O único movimento que se vê nesta performance, é o balançar inseguro das pedras que sobem e descem conforme a respiração dos performers. O grupo atuante se manterá deitado com a pedra até que não aguente mais, entrando em questão uma temporalidade subjetiva, impossível de mesurar - a ação dura tempo indeterminado.
A ação sairá da sala sem tempo determinado e sem controle definido de seus significados, interferindo na rotina dos passantes apressados, o grupo de estudos ecoa na rua, uma vez mais, buscando colidir a pesquisa no asfalto. Une forças a um festival auto-gestionário, de tomada da sociedade civil do espaço da rua.



http://festival.baixocentro.org/#

25.3.13

Hotsite do processo - 2013

Postado por Núcleo Cinematográfico de Dança |


Para esse novo processo de 2013 - "entre este um e outro" - criamos um hotsite que abrigará, individualmente, os 13 estudos, e que facilitará a organização, o acesso e compartilhamento dessas pesquisas. Acesse http://16emeia.hotglue.me/.
Outros assuntos e atualizações do 16 mulheres e 1/2, continuarão a ser publicadas nesse blog.

11.3.13

“Entre este um e outro - primeiros estudos”

Postado por Núcleo Cinematográfico de Dança |

Por Maristela Estrela

Propostas gerais
Com o intuito de desenvolver um estudo coreográfico específico para um performer, os integrantes, individualmente, elegerão um problema/situação a partir de experiência anterior com as “janelas poéticas” e assim explorarão aspectos compositivos acerca do material corporal que será levantado nesse processo.

Para o desenvolvimento desse estudo, o autor compartilhará o seu problema com uma pessoa do grupo, elaborando estratégias e meios de fazer dele o intérprete-criador desse “solo”.

Um primeiro e único verbo de ação/ ou princípio físico da dança será a ignição para o desenvolvimento desse estudo. O verbo/princípio aqui é visto também enquanto matéria plástica.

Cada estudo poderá ter como convidado uma terceira pessoa (de dentro ou de fora do grupo) para acompanhar/provocar/”olhar de fora” e compartilhar momentos específicos do processo. Esse contato poderá ser presencial ou por outros meios de comunicação.
Nesse processo de criação-transformação-tradução: os criadores vão compartilhar através desse site, o processo de colaboração, de modo a alimentar a criação/fruição do estudo e onde todos possam ter livre acesso.
Concomitantemente a esse processo, os criadores deverão planejar uma maneira de “apresentação” pública desse primeiro estudo. Serão “apresentados” ao todo treze estudos. Esses “solos” poderão ser constituídos por uma diversidade de formatos e linguagens.
Pretende-se que essas “apresentações” sejam realizadas na primeira quinzena de Julho em diferentes locais da cidade de São Paulo. Durante as “performances” estarão visíveis rastros essenciais do percurso desenvolvido a partir do problema inicial.

Serão realizados também registros em vídeo, manuscritos, depoimentos, descrição de procedimentos e demais referências para compor essa cartografia do processo coletivo.

Focos de interesse: relação entre corpo/objeto, coreografia/improvisação, focar/desfocar, continuidade/descontinuidade, edição/planificação do movimento, dissociação, dentre outros, são alguns dos atuais focos de interesse.

4.3.13

Continuidade do processo 2013

Postado por Núcleo Cinematográfico de Dança |

Por Maristela Estrela

O grupo de estudos 16 Mulheres e ½ (16mulheresemeia.blogspot.com) inicia em 2013uma nova etapa do processo da investigação de metodologias e procedimentos de criação em dança. A pesquisa, que acontece semanalmente, parte de algumas questões e interesses dos participantes, além de questões oriundas dos processos de criação do Núcleo Cinematográfico de Dança.
Como construir corporalidades e dramaturgias autorais provocadas por procedimentos, referências e estéticas coletivas?
Na fase anterior a esse projeto reelaboramos e testamos alguns procedimentos gerais, como a investigação entre corpo-objeto e coreografia-improvisação – em interface com princípios anatômico- fisiológicos com base em técnicas somáticas - instrumentalizando a pesquisa dos integrantes.
Assim, aprofundamos no processo de tradução dessas materialidades e poéticas, descobrindo outros modos de aplicação desses conteúdos.
A nova etapa da pesquisa se concentrará no desdobramento do que nomeamos de “janelas poéticas”. As janelas poéticas foram breves ciclos criativos inspirados livreme nte no texto “Ano Zero- Rostidade” de Deleuze.
A partir da leitura do texto, Maristela Estrela, coordenadora/mediadora do grupo trouxe duas questões para os integrantes: “Que rosto tenho dado à minha dança? Que rosto essa dança tem me dado?”. Os integrantes então responderam verbal e corporalmente, e suas respostas foram estímulo para os processos que seguiram.

A partir das respostas de quatro dos integrantes do grupo, uma série de procedimentos, elaborados por eles próprios, foram compartilhados com o coletivo, ao longo de um semestre, e onde foram desenvolvidas quatro das “janelas poéticas”.

A seguir foram desdobradas e exploradas as diferentes qualidades, texturas, dinâmicas e partituras de movimento nascidas nessa primeira fase das “janelas poéticas.
No semestre seguinte, foram então elaboradas e experimentadas novas estratégias com o objetivo de compartilhar esses materiais, recriando-os em um processo de co-autoria e síntese em duetos, trios, etc.

“Entre este um e outro- primeiros estudos ” é o atual projeto do 16 Mulheres e 1/2 concebido originalmente por Maristela Estrela e que será agora apropriado por cada um do grupo, com a finalidade de transformar-se em matéria plástica, passível de ser torcida, cortada, cos turada, borrada e reagrupada, produzindo novos caminhos para o grupo.

Trata-se, portanto, de um novo processo de investigação para o desenvolvimento de pequenos solos coreográficos propostos entre os integrantes do 16 mulheres e ½ a partir do desenvolvimento e desdobramento de problemas/questões levantados no processo das “janelas poéticas” em 2012.
Serão desenvolvidos processos colaborativos em diferentes núcleos, sempre entre duas pessoas do grupo, que poderão contar ainda com um convidado/provocador de fora do grupo, para a criação de um pequeno solo/performance/instalação/intervenção/vídeo de dança, etc.
A idéia será olhar para esses “solos” não apenas a partir das especificidades que os compõem, mas também para todo o conjunto, observando uma trajetória do 16 mulheres e 1/2.
A partir desses “solos” pretende-se esboçar uma cartografia dos atravessamentos vividos, orientando a pesquisa para novos problemas/questões e futuros agrupamentos acerca de estudos sobre composição em dança e possíveis relações entre linguagens afins.

12.7.12

Impressões do Degelo

Postado por 16 mulheres e 1/2 |


“Degelo” – 1.o intercâmbio de idéias e ações  - 16 Mulheres e ½ 

Descongelar  - 24/05/12 
por Monica Lopes

Senti o corpo descongelando por mais estranho que isto possa parecer ao estar com os pés em cima de barras de gelo.  O frio do gelo ativava a eletricidade do meu corpo e - apesar do incômodo real - eu sentia meu corpo mais vivo e receptivo a tudo que estava fora. Um silêncio profundo se apossou de mim.  Sentia os micro-movimentos do meu corpo em reação a tal eletricidade que me atravessava na forma de pequenos impulsos – havia um risco ali, risco de queda abrupta, sem controle, medo do não-controle! Estes impulsos me levavam a um desequilíbrio constante, uma instabilidade recorrente. O gelo nos meus pés iniciou um processo de trincar o meu corpo de dentro para fora e, por fim, meu corpo estava vivo, pleno, presente, real. Trincava uma casca meio carne-meio gelo e eu me desfazia em meio a cidade - passeio público turístico – marco n.o 01 da cidade de São Paulo. Era noite, luzes alaranjadas, janelas ao longe acesas, prédios antigos, pessoas passavam apressadamente no seu trajeto cotidiano. Formavam-se aos poucos poças d’água que escorriam do gelo e faziam desenhos - reflexos da cidade - reflexos da experiência que acabara de acontecer ali.

Era um outro tempo. Temporalidade do permanente. Nós permanecíamos ali e algo se movia dentro de nós. Tudo ficava mais quente e vivo! Depois veio a chuva pela madrugada...




O gelo e a cidade - 24/05/12
por Monica Lopes

O gelo e a cidade: o movimento da cidade me afetava e se misturava com as infinitas mudanças que aconteciam a cada segundo dentro do meu corpo. Era um mesmo universo o dentro e o fora em eterno movimento, apesar da aparente estática do meu corpo em cima de uma barra de gelo. A permanência se fazia no experienciar estar ali, permanecer e suportar. Suportar a intensidade de vida que estava contida ali naquele instante - em se propor a vivenciar o risco, o não conhecido, o fora do lugar.

Olhava as pessoas na rua apressadas, algumas no ponto de ônibus, outras dentro dos ônibus que passavam na rua à nossa frente, elas murmuravam coisas que eu não conseguia distinguir. Neste momento eu já perdera a total noção espacial e achava que a qualquer momento iria simplesmente cair.

Depois disso senti que poderia ficar ali por uma eternidade, para o resto da vida. E não sentia mais medo nenhum.  Eu derretia e descongelava. Estava ali final tarde-quase noite -centro de SP, Pateo do Colégio - em cima de uma barra de gelo. Eu e mais algumas pessoas enfileiradas lado a lado. Olhávamos para a rua - esta movimentada mesmo à noite. Estávamos na parte mais antiga da cidade. Dalí se avista muitos prédios antigos cheios de histórias, janelas ao longe acesas.

Um homem fazia entrega, outro voltava do trabalho ainda de uniforme. Homens vestidos de terno olhavam enquanto passavam apressadamente. Uma moça parou e tirou uma foto. Um homem fumou. Tinha algo ali de bicho, exótico, de algo fora do tempo e do lugar.  Havia uma contradição. Olhei pessoas voltando para casa cansadas de mais um dia de trabalho. Era visível. Ainda iriam pegar ônibus e sacolejar por aí, até finalmente chegar em casa.

Era uma sensação muito real olhar a cidade naquele contexto – músculos, circulação sanguínea, sistema nervoso se ativavam para se adaptar a nova realidade.  Percepção do gelo derretendo por baixo, mudando a forma, instabilidade a cada segundo, nada era estável. Cada micro-movimento era muito significante.

E neste descongelar saí vagarosamente – um pé depois o outro – do gelo.  Meus pés afundavam em um chão macio, profundo; eles afundavam mais do que de costume como se o chão afundasse com os pés. O pisar era uma sensação incrivelmente prazerosa. Meu corpo inteiro não era mais o mesmo. Derreteu, trincou e só ficou a camada mais interna. E esta camada estava ali andando agora. As vezes olhava para trás e via as marcas dos meus pés no gelo e voltava a caminhar. 

Pela tarde fez Sol mas depois tinha uma nuvem que insistia em ficar nos acompanhando. Ficamos lá com guarda-chuvas e caixotes na conversa com a Graziela.

Depois veio a chuva na madrugada....

A chuva chegou por fim e eu sentia dentro de mim ainda a àgua do gelo derretido - memória do corpo, da pele, imagens de cidade - uma pele em carne viva depois da casca ter rachado e saído.  

19.6.12

Sobre o Degelo

Postado por 16 mulheres e 1/2 |




Notas acerca de intervenção desenvolvida pelo 16 mulheres e 1/2 no 1o. intercâmbio de idéias e ações do Núcleo Cinematográfico de Dança.



por Carolina Nóbrega.

Subo no gelo. Subimos. Iria doer. Doer muito. Haviam dito.
Subimos e eis-nos, um Gicometti ao avesso, não de cobre durável, mas sobre o gelo, que é duro, mas derrete. Subimos e eis-nos, um Giacometti ao avesso, não terroso e ancestral, mas frio e urbano: Diante do ponto de ônibus.
Diante da espera.
Derretiam os gelos delicada e lentamente, sem perder a forma (como um suor ou como lágrimas) e a água que os gelos criavam, curiosamente o chão conduziu em um só rio, que margeava o ponto de ônibus e escorria no meio fio.
Era noite. As luzes sensíveis, amarelas e não frias, do centro da cidade. Os grandes prédios.

Iria doer. Doer muito. Haviam dito.
Se doía, não sei. Talvez aos poucos, não muito. O gelo é duro, mas não pedra. Ele e a água foram envolvendo a meia e meus pés aos poucos. Doeu um pouco o meu calcanhar. Talvez ele um pouco virou pedra, eu mesma não poderia escorrer junto, naquele afluente até a rua. Eu parei. E nesse parar estive cheia. Nada precisaria ser feito. Estava em meu pedestal frágil, que me consumia a suaves gotas. E aquela pequena dor me dizia do viver. Ah, não é meio isso o viver? Habitar fragilidades com uma pequena dor que consome a suaves gotas?

A direita, o impôstometro seguia tecendo seus infindáveis números, números que nem sei mesurar, não me fazem sentido. Os números correm no acumular dos dias.
Por que corremos nós ao acumular dos dias?
ah.
Parar e um pouco doer e um pouco estar imóvel. Sim. Ali não estava enganando ninguém.


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No ponto de ônibus, uma menina nova nos olhou fundo. Um olhar mareado e longo. Ela sustentou seu olhar sensível e sério 10 minutos sem desviar. Não sei se derretia com o gelo ou se entendeu do imóvel. Depois sumiu num ônibus. (Eu acho que me apaixonei por ela por aqueles 10 minutos).
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Eu poderia ficar ali horas. Não tive vontade de nada. Poderia ficar eternamente. A verdade é que estaria lá até agora. 

(talvez esteja, sózinha já, em cima de uma pedra, envolta doutras tantas vazias, já ninguém na rua, eu olhando o vazio, e o impostometro a seguir contagens)

Será que eu perceberia se meu pé gangrenasse? Será que sairia antes? Ou o gelo teria me envolvido em sua doída e honesta imobilidade e eu perderia meu pé por ele?

A partir de agora podem fazer o que quiser, disseram. O que quiser. Mas eu havia estancado o querer. Meu pé duro se sentiu aliviado por sua anestesia... "finalmente não preciso e nem poderei levá-la a lugar nenhum", meu pé pensava.

Em volta de mim, muitos seres em pedestais de gelos estavam também parados, talvez também seduzidos pelo imóvel, outros se mexiam, mexiam, já se misturavam um pouco ao vai e vem dos ônibus... me senti quase como uma pedra que sempre existiu e viu diferentes espécies a viver e morrer, sem se apegar a nada, guardando apenas alguns olhares pra dentro.

Todos desceram dos gelos e eu ainda estava. Só saí dali porque me ofereceram uma mão, talvez eu não saberia como ou porque descer sózinha. Ela percebeu, acho, e me ofereceu sua mão. Pisar o chão de novo doeu. Subiram sensações em onda. Ah, terei que voltar a me mover? Paro um tempo, agaixo, sinto meu pé em conflito de existência. E eu percebo as pessoas queridas ao fundo, já se movendo, conversando, se arrumando... ... ... ... Quero retardar um pouco... Quero... ... ... Quero retardar um pouco. A vida voltou a ser banal e um pouco desonesta... sinto-me numa espécie de contaminação... Devolvam-me a pedra, o gelo, por favor?

Olho pra frente. Uma placa. Aqui nasceu a cidade de São Paulo. É isso. A cidade ficou nua. Cidade gelo. Quando de fato paramos para te permitir escorrer? Hoje me impliquei para que um pouco escorresse. Mas por mais que implicasse toda a minha força, você se manteria pedra e eu gangrenaria em prol de pequenas gotas bastante insignificantes em relação aos seus blocos rígidos.

O gelo me deixou nua.

Choro. É estranho voltar as pequenas banalidades da vida.  Falar do ônibus, da roupa, falar sobre qualquer coisa. Choro dessa passagem, ela não me é natural, ela me invade, violentamenta, me atravessa.

Por que só vivemos fundo nas brechas?

Volto para a vida. O Terminal Bandeira. Minha casa.

E agora de tempos em tempos, no meio das coisas simples das repetições que chamamos de nós, imagino os blocos de gelo na praça, solitários, a escorrer lentamente seu rio, espelhando um pouco de nossa solidão.

12.5.12

Cavidades...

Postado por 16 mulheres e 1/2 |

por Monica Lopes 


Procedimento: Vidros

Pressão, tensão nos músculos. Corpo as vezes torcido e em outros momentos completamente largado no espaço. Cansaço de tanto se debater. Grito, vontade de gritar e não poder. Rosto sem boca, sem olhos. Cavidades se movem. Rosto em carne viva, vísceras para fora do corpo, músculos, sangue. Impulsos de bicho, garras. Pressão na cavidade da boca. Não há como falar. Pele que rasga, deforma o rosto, o corpo. Pele que deforma outra pele. Lábios, dentes. Vontade de gritar. Violência. Pressão nos dentes, na boca, nos olhos. Musculatura em estado de alerta, perigo. Olhar o espaço através dos vidros, nada a fazer. Garganta anestesiada. Eu sou outro corpo, vazio. Nada a fazer. Um corpo que olha o espaço e se move. Nada a fazer.

Eu sem rosto, dilacerada, em carne viva, exposta, sangrando. O pulso do sangue, os dentes rangendo. Meus dentes estavam presos, um mordedor? Imagens de prisão, algemas, corpo em pedaços. Paisagem de tensão por todos os lados e em todas as direções e era contínuo. Pressão, partes do corpo sendo pressionadas, parede. Sem olhos - com antenas? - espasmos do corpo tentando se expandir e se libertar. Rosto sem olhos, sem nariz e sem boca. Cavidades do rosto e do corpo se movendo pelo espaço. Rosto sem olhos, mãos delicadas, amarradas com a cabeça. Dificuldade de locomoção, impulsos vindos de fora. Algo que empurra, sem controle. Sou atravessado. Cavidades se movem, nada a fazer. Garganta anestesiada. Eu sou outro corpo. Corpo, vazio. Nada a fazer.

Torções do corpo pelo espaço, cotovelos que tentam abrir espacialidades, giros. Mãos que pressionam, empurram o espaço, pele do rosto que se move e move todo o corpo em impulsos. Escápulas com peso para baixo. Rosto pressionado, testa, nariz, bochecha, boca, dentes. Pressão do rosto, pele do rosto que rasga. Mãos, dedos que movem, delicadeza. Cabeça segue o rosto, e as pernas seguem a continuidade do impulso. Pescoço, garganta, mãos e braços pressionados. Espasmos, musculatura da boca tremendo. Nada a fazer. Garganta anestesiada. Eu sou outro corpo. Corpo, vazio. Nada a fazer.





12.5.12

Pedra... Coração... Boca...

Postado por 16 mulheres e 1/2 |

por Monica Lopes 



Procedimento: Pedra no peito

Eu estou. Uma pedra. Respiração. Eu não me movo. Peso. Grito engasgado. Ahhhh! Respiração, costelas. Coração. Medo! Medo de não mais respirar. Peso. Terra. Pedra. Embaixo da terra. Subterrâneo. O que está embaixo? Soterrada. Ainda respiro? Me tornei pedra. Ela é lisa, escorregadia. Balanço do meu corpo. Sinto pesar cada vez mais. A respiração se acalma. Sou terra, quase adormeço. Pedra, coração, respiro. Eu não me movo. Medo de não mais respirar. Grito engasgado. Ahhhh! Boca, tubo digestivo. Vontade de falar. Mas eu sou uma pedra. Angústia, falta de ar? Respiro, me acalmo. Mais subterrâneo. Mergulho, peso. Boca, saliva. Grito Engasgado. Ahhhh! Respiração. Pedra. Pulsação, coração pulsa e move. Estar viva. Pedra, soterrado, morte? Peso, terra, vermes que vivem na terra, apodrecer? Subterrâneo, mais pesado. Peso, coração. Sinto o coração, ele bate, eu ouço. Ouço vozes, tem gente lá fora. Respiro. Grito engasgado. Ahhhh! Sons de passos, vozes, há pessoas conversando. Eu não me movo. Peso, terra, pedra, ela escorrega, é lisa. Subterrâneo, respiro, peso, mais peso, relaxo. Sou uma pedra. Uma corrente de água escorre incessantemente. Angústia, respirar, embaixo d'água. Os sons aumentam, passos, pessoas correndo. Pedra, coração, costelas, peso. Tem um conforto no peso no externo. Nada fazer. Eu não me movo. Boca, grito engasgado. Ahhhh! Som da respiração. Silêncio. A sala está quieta agora, só ouço o som da água que continua escorrendo. Ouço um homem que grita lá fora na rua. Ele se repete, entoa a mesma nota, um som agudo. Pedra, subterrâneo, soterrada, terra por todos os lados, eu sinto a terra, estou na terra, eu sou a terra. É quente e confortável. Peso. Respiração. A pedra é lisa, ela desliza, sinto o movimento do meu corpo pulsando, vivo. Medo! Soterrado, morte! Grito engasgado. Ahhhh! A movimentação se expande, ouço sons de materiais que rasgam o chão, água escorrendo, vozes, pessoas conversando. Sinto passos próximos a mim. Eu volto de maneira abrupta, camadas e camadas submersas. Eu abro os olhos. Sensação de sufocamento, eu volto a respirar. Estou de volta.  

9.5.12

Pedra no Peito. Peito em Pedra.

Postado por 16 mulheres e 1/2 |

 

Ana Mendieta  -  Burial Pyramid (1974)