Impressões do Degelo
Notas acerca de intervenção desenvolvida pelo 16 mulheres e 1/2 no 1o. intercâmbio de idéias e ações do Núcleo Cinematográfico de Dança.
por Carolina Nóbrega.
Subo no gelo. Subimos. Iria doer. Doer muito. Haviam dito.
Subimos
e eis-nos, um Gicometti ao avesso, não de cobre durável, mas sobre o gelo,
que é duro, mas derrete. Subimos e eis-nos, um Giacometti ao avesso, não
terroso e ancestral, mas frio e urbano: Diante do ponto de ônibus.
Diante da espera.
Derretiam os gelos delicada e lentamente, sem
perder a forma (como um suor ou como lágrimas) e a água que os gelos criavam,
curiosamente o chão conduziu em um só rio, que margeava o ponto de
ônibus e escorria no meio fio.
Era noite. As luzes sensíveis, amarelas e não frias, do centro da cidade. Os grandes prédios.
Iria doer. Doer muito. Haviam dito.
Se
doía, não sei. Talvez aos poucos, não muito. O gelo é duro, mas não
pedra. Ele e a água foram envolvendo a meia e meus pés aos poucos. Doeu
um pouco o meu calcanhar. Talvez ele um pouco virou pedra, eu mesma não
poderia escorrer junto, naquele afluente até a rua. Eu parei. E nesse
parar estive cheia. Nada precisaria ser feito. Estava em meu pedestal
frágil, que me consumia a suaves gotas. E aquela pequena dor me dizia do
viver. Ah, não é meio isso o viver? Habitar fragilidades com uma
pequena dor que consome a suaves gotas?
A direita, o impôstometro seguia tecendo seus infindáveis números,
números que nem sei mesurar, não me fazem sentido. Os números correm no
acumular dos dias.
Por que corremos nós ao acumular dos dias?
ah.
Parar e um pouco doer e um pouco estar imóvel. Sim. Ali não estava enganando ninguém.
.
No
ponto de ônibus, uma menina nova nos olhou fundo. Um olhar mareado e longo.
Ela sustentou seu olhar sensível e sério 10 minutos sem desviar. Não
sei se derretia com o gelo ou se entendeu do imóvel. Depois sumiu num
ônibus. (Eu acho que me apaixonei por ela por aqueles 10 minutos).
.
Eu poderia ficar ali horas. Não tive vontade de nada. Poderia ficar eternamente. A verdade é que estaria lá até agora.
(talvez
esteja, sózinha já, em cima de uma pedra, envolta doutras tantas
vazias, já ninguém na rua, eu olhando o vazio, e o impostometro a seguir
contagens)
Será que eu perceberia se meu pé gangrenasse? Será que sairia antes?
Ou o gelo teria me envolvido em sua doída e honesta imobilidade e eu
perderia meu pé por ele?
A partir de agora podem fazer o que
quiser, disseram. O que quiser. Mas eu havia estancado o querer. Meu pé
duro se sentiu aliviado por sua anestesia... "finalmente não preciso e
nem poderei levá-la a lugar nenhum", meu pé pensava.
Em volta de mim, muitos seres em pedestais de gelos estavam também
parados, talvez também seduzidos pelo imóvel, outros se mexiam, mexiam,
já se misturavam um pouco ao vai e vem dos ônibus... me senti quase como
uma pedra que sempre existiu e viu diferentes espécies a viver e
morrer, sem se apegar a nada, guardando apenas alguns olhares pra
dentro.
Todos desceram dos gelos e eu ainda estava. Só saí dali porque me
ofereceram uma mão, talvez eu não saberia como ou porque descer
sózinha. Ela percebeu, acho, e me ofereceu sua mão. Pisar o chão
de novo doeu. Subiram sensações em onda. Ah, terei que voltar a me
mover? Paro um tempo, agaixo, sinto meu pé em conflito de existência. E
eu percebo as pessoas queridas ao fundo, já se movendo, conversando, se
arrumando... ... ... ... Quero retardar um pouco... Quero... ... ... Quero retardar um
pouco. A vida voltou a ser banal e um pouco desonesta... sinto-me numa
espécie de contaminação... Devolvam-me a pedra, o gelo, por favor?
Olho pra frente. Uma placa. Aqui nasceu a cidade de São Paulo. É
isso. A cidade ficou nua. Cidade gelo. Quando de fato paramos para te
permitir escorrer? Hoje me impliquei para que um pouco escorresse.
Mas por mais que implicasse toda a minha força, você se manteria pedra e
eu gangrenaria em prol de pequenas gotas bastante insignificantes em
relação aos seus blocos rígidos.
O gelo me deixou nua.
Choro. É estranho voltar as pequenas
banalidades da vida. Falar do ônibus, da roupa, falar sobre
qualquer coisa. Choro dessa passagem, ela não me é natural, ela me
invade, violentamenta, me atravessa.
Por que só vivemos fundo nas brechas?
Volto para a vida. O Terminal Bandeira. Minha casa.
E
agora de tempos em tempos, no meio das coisas simples das repetições
que chamamos de nós, imagino os blocos de gelo na praça, solitários, a
escorrer lentamente seu rio, espelhando um pouco de nossa solidão.
Cavidades...
por Monica Lopes
Procedimento: Vidros
Pressão, tensão
nos músculos. Corpo as vezes torcido e em outros momentos
completamente largado no espaço. Cansaço de tanto se
debater. Grito, vontade de gritar e não poder. Rosto sem boca,
sem olhos. Cavidades se movem. Rosto em carne viva, vísceras
para fora do corpo, músculos, sangue. Impulsos de bicho,
garras. Pressão na cavidade da boca. Não há como
falar. Pele que rasga, deforma o rosto, o corpo. Pele que deforma
outra pele. Lábios, dentes. Vontade de gritar. Violência.
Pressão nos dentes, na boca, nos olhos. Musculatura em estado
de alerta, perigo. Olhar o espaço através dos vidros,
nada a fazer. Garganta anestesiada. Eu sou outro corpo, vazio. Nada a
fazer. Um corpo que olha o espaço e se move. Nada a fazer.
Eu sem rosto,
dilacerada, em carne viva, exposta, sangrando. O pulso do sangue, os
dentes rangendo. Meus dentes estavam presos, um mordedor? Imagens de
prisão, algemas, corpo em pedaços. Paisagem de tensão
por todos os lados e em todas as direções e era
contínuo. Pressão, partes do corpo sendo pressionadas,
parede. Sem olhos - com antenas? - espasmos do corpo tentando se
expandir e se libertar. Rosto sem olhos, sem nariz e sem boca.
Cavidades do rosto e do corpo se movendo pelo espaço. Rosto
sem olhos, mãos delicadas, amarradas com a cabeça.
Dificuldade de locomoção, impulsos vindos de fora. Algo
que empurra, sem controle. Sou atravessado. Cavidades se movem, nada
a fazer. Garganta anestesiada. Eu sou outro corpo. Corpo, vazio. Nada
a fazer.
Torções
do corpo pelo espaço, cotovelos que tentam abrir
espacialidades, giros. Mãos que pressionam, empurram o espaço,
pele do rosto que se move e move todo o corpo em impulsos. Escápulas
com peso para baixo. Rosto pressionado, testa, nariz, bochecha, boca,
dentes. Pressão do rosto, pele do rosto que rasga. Mãos,
dedos que movem, delicadeza. Cabeça segue o rosto, e as pernas
seguem a continuidade do impulso. Pescoço, garganta, mãos
e braços pressionados. Espasmos, musculatura da boca tremendo.
Nada a fazer. Garganta anestesiada. Eu sou outro corpo. Corpo, vazio.
Nada a fazer.
Pedra... Coração... Boca...
por Monica Lopes
Procedimento: Pedra no peito
Pedra no Peito. Peito em Pedra.
por Carolina Nóbrega
Por que dançarmos apenas com os ossos? Com as anatomias vistas em partes? Nossa obsessão anatômica, desejo de encontro de uma verdade, eixo de tranquilidade no qual posso me apoiar... (eu sei, aqui tem os maléolos). É uma potencia realmente... esse prazer de encontro ósseo, um prazer de apoio pro pulo, pra queda, pra sair do cotidiano olhando dentro e fundo, as linhas que apontam espacialidades... conecta o fora, a exatidão do osso. Maluco que o que impulsiona o movimento é exatamente aquilo de extrutura que sobrará quando nenhum movimento mais puder existir - apenas aqueles internos, dos vermes por dentro, da degradação, da vida mineral e vegetal.
Arte, entretetanto, não é ciência... é estranho precisar afirmar isso, sentir esse desejo de afirmar isso, expor isso. Se emprestamos coisas da ciência, precisamos também rejeitá-la, como um ato de comer e regurgitar. As verdades de corpo que estabelecemos não são verdades, são uma técnica, como poderiam haver outras e o raciocínio científico serve de apoio, um alinhamento, como poderiam haver outros.
Acho importante a arte como abridora de portas (de latas)... ou como um espelho ampliador das dores, manias, banalidades, tesões - faz sentido falar do que vive o corpo a partir do cúmulo do científico, mas pensando nisso de forma diálética - o corpo poético impossível de ser científico se debate em torno de se ver com um esternocleidomastóideo.
Quem dança sabe de si como qualquer outro sabe. É um saber com uma profundidade e densidade que podem ser incríveis. Mas também podem ser apenas um locus de poder. Eu conheço o corpo mais do que qualquer um... poderia alguém dizer. Mas existem homens no meio do canavial que vão do chão ao céu e se dobram sobre si mesmos como bonecos de articulação frouxa sem saber nada acerca de sua tíbia, fíbula, rádio, ulna...
Estar a dançar na cidade, urbana e intelectual, a partir de um saber que vem da ciência, da medicina ocidental, é um caminho que nos revela nossa frágil face - assim como o cortador de cana se revela em sua violência e sarcasmo quando dança. Dançar a partir da ciência, ter a dissecação de imagens anatômicas como um alimentador macabro é um espelho de origem que pode se revelar como potência desveladora de sentidos internos profundos, estranhos e esquisitos, diferentes da assepcia da verdade científica... A busca ontológica foge dos deuses e cai no osso.
Nosso mergulho no osso é também uma falta de opção... uma falta de uma verdade mais mítica e menos racionalista que nos revelem sentidos. Nós construímos nossa mitologia a partir dos livros anatômicos... e essa prisão nos liberta porque nos desnuda... e desnuda nosso tosco mundo ocidental... solitário no meio de suas supostas verdades, sonhando ser mais sábio e concreto do que um outro povo que compreende-se como sendo um espírito de pássaro por dentro de uma casca viva social.
Não somos mais sábios. Nem menos. Não sabemos uma verdade superior a qualquer outra. Não sabemos verdade alguma, como qualquer outro povo... não sabemos nada para além das breves imanências que nos assaltam e que a conciência persegue, para evitar que nos fragmentemos demais. Como qualquer um, em qualquer profissão, na dança, nos apoiamos em nossas mitologias... e sabemos que, mesmo partindo delas, para acontecer algo de imanente que de repente aconteça para além do repeteco cotidiano, precisamos explodir um pouco essas mitologias...
Penso, então, que ao invés de donos de uma verdade, nos compreendamos sobretudo como um povo órfão como qualquer outro, que constrói seus mundos e os dança, como uma forma de revelar, doer, sorrir e celebrar sua patética solidão - e exatamente quando está com ela, em coito com ela, também dela um pouco escapa, pois se entrega, se liberta de rejeitá-la.
Laerte.1
Larte.2
Laerte.3
por Carolina Nóbrega
arrudA me atravessa esse chovoso fim de tarde. Acorda de novo na pele e dentro nossos processos. Rosto. Rosto. arrudA me fere em atravessamentos. Poeta. Poesia é isso. Um calar. Um simplesmente. Só e tudo isso. Um infinito poucas frases. Toda uma experiência nossa em duas frases. Calo.
por Fabiane Carneiro
Depois da última carta, onde registrei:
Pedaços de pele
__________parede
__________tinta
__________descascam…
Acabei por me deparar com um trabalho de Alexandre Farto - Vhils, que fez aflorar todas as minhas antigas inquietações, que potencializou a minha pesquisa, que explodiu os pedaços,
Que rosto é esse? Como ele se materializa nesse espaço? Com que força se inscreve? Ou com que sutileza e leveza se esconde por debaixo do material etéreo, leve e permeável? Ou seria simplesmente aerado? Fragmentado, feito de pedaços?
Muito material para trabalhar e aprofundar … gostaria de compartilhar ...
Orelha Negra - M.I.R.I.A.M. X Vhils aka Alexandre Farto from Vhils on Vimeo.
16 mulheres...
Nós
Andreia Guilhermina